18 de outubro de 2008

Sobre as origens dos folhetins nos media


Os folhetins ou histórias em episódios surgiram na imprensa diária, na primeira metade do séc. XIX. As radionovelas e as telenovelas são a transposição ou adaptação deste género à rádio e à televisão. É sobre este tema a crónica de hoje de Educardo Cintra Torres, no Público.
Alguns excertos:

O nascimento da telenovela ficou destinado no dia 19 de Junho de 1842 - cerca de um século antes de aparecer a televisão. Nesse dia começou a publicar-se no Journal des Débats, de Paris, o folhetim de Eugène Sue Os Mistérios de Paris, o primeiro dos grandes êxitos do género. O furor foi total. A narrativa ia evoluindo consoante as reacções do público, como se o folhetim se escrevesse a si mesmo. Ricos e pobres agarravam-se ao jornal e liam os numerosos enredos simultâneos de acordo com os seus sonhos e a sua posição. As audiências aumentaram: o jornal ganhou 20.000 assinaturas. Os gabinetes de leitura pública alugavam um exemplar do Journal des Débats a dez soldos por meia hora.
(...) Sue defendia aqui a caridade e a acção individual, sem ter de alterar-se a ordem social: basta que o herói seja um super-herói e os pobres terão consolo. Por isso Marx e Engels, na sua primeira obra conjunta (1845), desancaram Sue.
Mas houve mais consequências: o mundo rendeu-se ao novo género do folhetim - melodrama em episódios mutantes - e por todo o lado surgiram mistérios: Mistérios de Berlim, Mistérios de Munique, Mistérios de Bruxelas, Mistérios de Londres, Mistérios de Marselha, Mistérios de Nápoles, até Balzac, o Grande, escreveu, para variar, Mistérios de Província, e por cá Camilo, porque tinha de ser ele, escreveu uns Mistérios de Lisboa (1854), que começam com a promissora frase folhetinesca "Era eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era." (Centenas de capítulos depois, Camilo acaba o melodrama com o desenlace apropriado: "O mundo ignora que estas duas sepulturas são o leito nupcial daqueles dois desgraçados.")
Escrito para o consumo de massa, obedecendo aos gostos e exigências da audiência, o folhetim pressupunha a perda de autonomia do escritor. E, com a escrita para o dia-a-dia, vergava às regras da indústria da imprensa. Era o primeiro exemplo flagrante das indústrias culturais. Edgar Poe não gostou que o "único objectivo" de Sue tivesse sido "fazer um livro excitante e, consequentemente, vendível." Até hoje, este dilema não abandonou as indústrias culturais, desde a literatura à TV.
É importante sublinhar que a actualidade social do folhetim de Sue contribuiu para o seu impacto. Entretanto, o mito em torno dos Mistérios de Paris avantajou-os; chegou-se a escrever que, ao consciencializarem o povo de Paris da sua miséria, tinham contribuído para a Revolução de 1848. Na verdade, o poder político esteve atento e arranjou maneira de condicionar autores e editores: a ERC da época fez sair em 1851 uma forma de censura indirecta, a lei Riancey, criando uma taxa de cinco cêntimos por cada jornal que incluísse um folhetim.
Os Mistérios de Paris prolongaram-se noutras formas de cultura de massas, com cinco adaptações francesas ao cinema entre 1911 e 1962, uma italiana (1957) e uma série de TV franco-alemã (1980). Depois da obra pioneira de Sue, cuja leitura integral é hoje tão intragável como seria ver ou ler os diálogos de Vila Faia (RTP1, 1982) ou de Todo o Tempo do Mundo (TVI, 1999), surgiram inúmeros folhetins, alguns para sempre, como Os Três Mosqueteiros ou O Conde de Monte Cristo. Num outro Mistério, o da Estrada de Sintra, Eça e Ramalho subverteram o género, fazendo do romantismo uma divertida mas criminosa estupidez.
Convém-me aqui um flash-back: em Inglaterra e em França já havia romances retalhados para divulgação parcial ou integral na imprensa, mas não eram folhetins como os Mistérios. O volte-face começa em 1836, com La Presse e Le Siècle, os primeiros jornais franceses destinados à massa e, pormenor nada desprezível, pioneiros no uso da melhor forma de introduzir a publicidade na imprensa: baixando o preço do exemplar. (...) Essas primeiras ficções na imprensa eram ainda romances divididos em parcelas diárias, enquanto Os Mistérios de Paris foi escrito enquanto folhetim, ao serviço do leitor e da actulidade para obter a máxima audiência, com as suas lágrimas de sangue, ganchos criando suspense para o dia seguinte, cenas intermináveis, repetição de narrativas e flash-backs, reconhecimento de filhos extraviados e de pais perdidos, com pobres e ricos cruzando-se num amor talvez não impossível ou num ódio talvez abatível. Nada que um espectador de hoje não conheça. (...)

(Imagem: Eugène Sue)

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