15 de outubro de 2008

Platão: a escrita, a memória e a sabedoria

In Platão. Fedro ou da Beleza. 2a. ed. Trad. e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães, 1981, p. 145-152.

(...)
Sócrates – Por acaso sabes quais são as condições necessárias para que, já os discursos, já as acções sejam agradáveis aos deuses?

Fedro – Não, e tu sabes!

Sócrates – Pelo menos, conheço uma lenda que nos foi transmitida pela tradição antiga. Se é verdadeira ou falsa, não sei, mas, se por nós mesmos pudéssemos descobrir a verdade, importar-nos-íamos com o que os homens dizem?

Fedro – Que pergunta! Vamos, conta-me essa história que dizes ter ouvido!

Sócrates – Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis [NT: Colónia grega no delta do Nilo. Platão visitou essa colónia aquando da sua estada no Egito], no Egito, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados, e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egipto era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egipto, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Ámon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más.

Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: “Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória: – “Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer!

Ela tornará os homens mais esquecidos pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração.

Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos não a sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por consequência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros!

Fedro – Com que facilidade inventas, caro Sócrates, histórias egípcias e de outras terras quando isso te convém!

Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Donona [NT: Cidade grega, notável pelo templo em honra de Zeus], foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante, conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!

Fedro – Tens razão para me castigares com essas palmatoadas mas, no que respeita à escrita, parece-me que o tebano tinha razão.

Sócrates – De onde se conclui o seguinte: se alguém expõe as suas regras de arte por escrito e um outro vem depois, que aceita esse testemunho escrito como sendo a expressão sólida de uma doutrina valiosa, esse alguém seria tolo, não entendendo o aviso de Ámon, e atribuiria maior valor às teorias escritas do que a um simples tópico para rememoração do assunto tratado no escrito, não é assim?

Fedro – Perfeitamente!

Sócrates – O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos mas, se alguém as interrrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve. Quando é menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda do seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo.

Fedro – Continuas a exprimir-te com toda a justeza!

Sócrates – Deveremos agora examinar uma outra espécie de discursos, irmã legítima da precedente, como nasce e em que é superior à outra espécie.

Fedro – A que espécie de discursos aludes e como surge?

Sócrates – Refiro-me ao discurso conscienciosamente escrito, com a sabedoria da alma, ao discurso capaz de se defender a si mesmo, e que sabe quando convém ficar calado e quando convém intervir.

Fedro – Por acaso estás a referir-te ao discurso vivo e animado do sábio, do qual todo o discurso poderia ser tomado com um simples simulacro?

Sócrates – Exactamente a esse! Diz-me então: um agricultor inteligente possui sementes às quais dá grande valor e de que pretende obter os frutos. Achas que esse agricultor pensaria em semear essas sementes durante o verão, nos jardins de Adónis [NT: Forma grega da palavra semítica Adon, o Senhor], e que esperaria vê-las desenvolvidas, tornadas plantas, no prazo de oito dias? Seria possível que assim acontecesse, mas a simples título de culto religioso, na altura das festas em honra de Adónis. Mas, quanto às sementes a que deseje dar um fim útil, semeá-las-á em terreno apropriado, utilizando a técnica da agricultura, e sentir-se-á muito feliz se, ao oitavo mês, colher todas as que semeara!

Fedro – É evidente, Sócrates, que esse homem faria ambas as coisas, uma com intenção séria, outra com intenção diversa!

Sócrates – Mas podemos nós dizer que o homem conhecedor do justo, do belo e do bom, dará às suas próprias sementes um uso menos avisado do que o agricultor?

Fedro – Por nada deste mundo!

Sócrates – Pois bem, é evidente que, quem conheça o justo, o bom e o belo não irá escrever tais coisas na água, nem usará um caniço para semear os seus discursos, os quais, além de impotentes para se defenderem por si mesmos, não servem para ensinar correctamente a verdade.

Fedro – Pelo menos não seria provável que o fizessem:

Sócrates – É evidente que não! Não deixará, naturalmente, de semear nos jardins literários, mas apenas por passatempo. Ao escrever, apenas procurará acumular para si mesmo um tesouro de rememoração para a velhice, pois os velhos esquecem tudo. Tirará também grande prazer em escrever para os que seguem no seu caminho e muito se alegrará vendo crescer essas tenras plantas. Enquanto uns se divertirão em banquetes e outros festins semelhantes, o homem de quem falo divertir-se-á com as coisas que referi.

Fedro – Que magnífico divertimento, Sócrates, quando comparado com essoutro género de divertimentos de que falaste! Que bela actividade a de um homem que se compraz escrevendo discursos sobre a Justiça e sobre outras virtudes!

Sócrates – Assim é, meu caro Fedro! Todavia, acho muito mais bela a discussão destas coisas quando se semeiam palavras de acordo com a arte dialéctica, uma vez encontrada uma alma digna para receber as sementes! Quando se plantam discursos que se tornam auto-suficientes e que, em vez de se tornarem estéreis, produzem sementes e fecundam outras almas, perpetuando-se e dando ao que os possui o mais alto grau de felicidade que um homem pode atingir!

Fedro – Isso que agora disseste é ainda mais belo!

Sócrates – Já que chegamos e um acordo, caro Fedro, podemos decidir agora sobre outro assunto?
(...)


Comentando esta passagem (cujo título e resumo recuperei), o professor e historiador luso-brasileiro Aníbal Bragança, da Universidade Federal Fluminense, escreve no seu blogue Ler, Escrever e Contar:

Certamente produto das dores da transição grega da oralidade para a sociedade letrada, esta passagem do Diálogo de Platão, Fedro ou Da beleza, é constantemente referida pelos estudiosos da escrita e da memória. Cremos ser ela também muito útil para se pensar nas relações entre uma certa sabedoria e a chamada erudição. Questões que certamente lhes interessam, rara e raro leitores, o que animou este neoblogueiro a fazer o registro abaixo, um pouco mais longo que o habitual, torcendo para que esta garrafa que o contém, antes de alcançar terra fértil, não se quebre de encontro a algum rochedo e tudo se perca nas águas do mar salgado. A tradução, logo se percebe, é portuguesa e castiça!

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