"No meu primeiro dia de escola, havia uma rapariga. Ela era portuguesa e chamava-se Ana Maria. Eu olhei para ela e soube imediatamente que queria ser a sua melhor amiga. Fiquei fascinada e por isso fui ter com ela e tentei ser a sua melhor amiga. Ela falou-me sobre a sua village [aldeia] em Portugal. Eu nem sabia o significado da palavra "village". Perguntei-lhe o que era. Ela respondeu-me assim: "Uma village é um sítio em Portugal onde tens os teus avós!" E essa passou a ser a minha definição. Depois, fui perguntar aos meus pais: "Eu também tenho avós numa village em Portugal?" E eles responderam-me: "Hã? O único avô que te resta está em Nova Jérsia." Mas isso não me importou. Eu tinha os meus avós imaginários em Portugal e a minha village.
Isto foi em Hollywood, nos Estados Unidos (...).Isso tornou-se numa espécie de piada na família. Sempre que estava mais triste, o meu pai dizia: "There is Geraldine, in her portuguese village, with her saudade!"
(...)
"Com oito anos era fantástico ser filha do Charles Chaplin. Ser sua filha era ser filha do melhor e do mais amado homem do mundo.
Um dos piores momentos da minha infância foi quando eu e o meu irmão nos aventurámos para fora de casa, em Hollywood. No início do caminho para a nossa casa havia um grande portão e nós fomos até à rua. Estava uma senhora a passar e nós começámos: "Nós somos os filhos do Charles Chaplin! Nós somos os filhos do Charles Chaplin!" Horrível. A mulher respondeu: "Quem é o Charles Chaplin?" Nós fugimos para dentro de casa, corremos escadas acima, escondemo-nos no escuro, debaixo da cama, e pensámos: "Se calhar o nosso pai não é o homem mais conhecido do mundo! Se calhar ele não é o mais amado! Se calhar nada disto é verdade, se calhar é tudo uma grande mentira!"
Mas nós sempre soubemos que ele era o homem mais conhecido e o mais amado do mundo.
Ele contava histórias para adormecer. As crianças adoram ser assustadas e ele contava-nos histórias de terror. "Era uma vez, uma rapariga pequenina. Ela era muito simpática e bonita. Um dia, uma fada foi ter com ela e disse: 'Queres ir até a terra das fadas comigo?' Ela disse: 'Sim.' Então, foram as duas para a terra das fadas, entraram num palácio muito bonito, com muitas fadas. Depois da sala, foram para a cozinha e aí a fada disse: 'Está aqui um triturador de carne. Se olhares lá para dentro, vais ver uma estrela.' A menina meteu a cabeça no buraco, a fada empurrou-a lá para dentro e as outras fadas começaram a cantar: 'Salsichas, salsichas'..." Eu e os meus irmãos delirávamos com estas histórias!"
(...)
Ele fazia tudo em casa. Compunha a sua música no piano da sala, com um gravador ao seu lado, escrevia os seus guiões, a sua autobiografia. Estava sempre a trabalhar. Nós não o podíamos incomodar, andávamos com pés de algodão à volta de casa e dizíamos: "Chiu, o paizinho está a trabalhar."
(...)
Era um homem político. Foi banido dos Estados Unidos, mas eu e os meus irmãos nunca soubemos de nada porque o meu pai e a minha mãe foram fantásticos. Nós sabíamos que íamos para Inglaterra, mas não sabíamos que não íamos voltar.
Foi apenas com 14 anos que alguém na escola me disse: "Sabes uma coisa? O teu pai é um comunista." E eu respondi: "Oh, a sério?" Eu não queria acreditar. Estava tão orgulhosa que o meu pai fosse um comunista, era a melhor coisa que se poderia ser no fim dos anos 50. Estava numa escola católica e, de repente, era uma rebelde: o meu pai era um comunista! Ele não era um card carrying communist, mas tinha um enorme sentido de injustiça; da forma injusta como o mundo em que vivíamos era governado. Hoje seria ainda pior.
Ele nunca nos falava das coisas directamente, apresentava-as e deixava-nos descobri-las e julgá-las. Levava-nos em viagens pelo mundo, dois de cada vez.
Mandou-nos para uma escola católica, apesar de ser ateu. Disse: "Onde se tem a melhor disciplina? Então é para lá que eles vão."
Nunca tinha ouvido falar de Deus até chegar à escola. Quando lá cheguei, pensei: "Deus é tão poderoso, deve ser o director da escola!" Depois falei com o meu pai e perguntei: "Porque não acreditas em Deus?" Ele respondeu: "Oh Geraldine, eu queria, eu gostava muito. Mas não acredito!"
(...)
Comigo e com as minhas irmãs era muito rígido. Mais do que com os rapazes. Era muito vitoriano em relação às filhas. Acho que, por ele gostar de mulheres novas, via todos os homens à nossa volta como predadores. Ele era muito rígido mas isso foi bom. Aprendemos a disciplina e não há nada de errado nisso.
Charlot é o meu herói. Representa tudo aquilo em que eu acredito. É o tipo pequeno que consegue sair sempre por cima, que se estafa completamente, mas que nunca perde a sua dignidade e é um romântico. Por isso, sim. É mesmo o meu herói. Eu nunca conheci o Charlot porque quando nasci o meu pai já tinha o cabelo branco e era mais velho. Sempre soube que era o meu pai, mas o Charlot era alguém que estava no ecrã e não alguém que andava lá por casa.(...)
In "O meu pai, o homem mais amado do mundo", texto de Alexandre Soares, Público de
12.10.2008.
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